Em 1973, o cantor e compositor carioca Oswaldo Rui da Costa, o Macau, foi preso e agredido por policiais no abastado bairro carioca da Lagoa, para onde ele tinha ido ver exposição escolar. Macau foi jogado no camburão e levado para a delegacia pelo simples fato de ser negro. Ao ser solto, ele expiou a revolta na praia, com o violão, compondo Olhos coloridos, funk que se tornaria um hino informal do movimento negro carioca ao ser gravado em 1982 pela cantora Sandra de Sá. O abuso de poder policial sofrido por Macau é relatado pelo artista nas páginas 88 e 89 do livro 1976 – Movimento Black Rio (Editora José Olympio / Natura Musical), lançado neste mês de novembro de 2016.
O livro expõe o poder de um movimento de música e orgulho negros que se formou na cidade do Rio de Janeiro (RJ) ao longo dos anos 1970. A rigor, o movimento musical conhecido como Black Rio não está fazendo 40 anos em 2016, como pode dar a entender o título do livro dos jornalistas Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe. O que completou quatro décadas foi a exposição do movimento de soul e funk na mídia, mais precisamente a partir de 17 de julho de 1976, quando o suplemento cultural do Jornal do Brasil, o então influente Caderno B, publicou extensa e controvertida reportagem da jornalista Lena Frias sobre a agitação musical e social.
Intitulada Black Rio – O orgulho (importado) de ser negro no Brasil, a reportagem chamou a atenção da branca elite carioca para os bailes que reuniam multidões nos bairros do subúrbio da cidade do Rio de Janeiro (RJ). E nem todo mundo viu com os olhos justos de Macau o fato de milhares de jovens estarem sacolejando o corpo negro e a cabeleira black power nos chamados bailes da pesada. Houve reações de quem enxergava alienação no movimento. Como contam os autores, foi até forjada na mídia uma rixa entre o soul e o samba que, a rigor, nunca foi real. Até porque, como revela o livro, o compositor Antonio Candeia Filho (1935 – 1978), pilar do samba de raiz, era amigo de Asfilófio de Oliveira Filho, o Filó, uma das personagens centrais da narrativa fragmentada de Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe.
Filó foi um agitador cultural da cena black erigida no Rio na primeira metade da década de 1970. Em capítulos curtos, os autores do livro perfilam personagens como Filó, mostrando como se formaram as equipes (Soul Grand Prix, Cash Box e Black Power, entre outras) comandadas por DJs e produtores dos bailes. Contudo, o livro 1976 – Movimento Black Riotem o mérito de extrapolar a questão meramente musical. Até porque o Black Rio foi movimento tão musical quanto político. O soul e o funk importados dos Estados Unidos foram a trilha sonora de uma juventude que descobriu o orgulho de ser negro e, por isso, foi taxada injustamente de racista por setores da elite carioca.
O livro toma justo partido dessa juventude ao mesmo tempo em que historia os primórdios do som black nacional, dando o devido destaque a artistas como Tim Maia (1942 – 1998) e Tony Tornado, cantores que hastearam a bandeira da música negra norte-americana no Brasil (Tim foi particularmente genial ao mixá-la com ritmos brasileiros como o samba).
Filó atravessa toda a narrativa de 1976 – Movimento Black Rio, inclusive discorrendo sobre os motivos que resultaram na progressiva implosão do movimento a partir dos anos 1980, ainda que, de certa forma, a herança do Black Rio tenha se expandido pelos bailes de charmdos anos 1990 e pelo batidão ainda em voga do marginalizado funk das favelas.
Com farta exposição de imagens (muitas de autoria de Almir Veiga, fotógrafo da lendária reportagem de Lena Frias) que valem por mil palavras, o livro é bem fundamentado, embora a narrativa soe por vezes redundante pelo próprio caráter fragmentado. Falta ao texto um estilo mais refinado, como o do texto escrito pelo jornalista Silvio Essinger para a orelha do livro. Faltou também mais rigor na revisão, o que permitiu a publicação de erros como o do nome do compositor Paulo Sérgio Valle (grafado como Paulo Cesar Valle na página 40) e da localização do bairro de Anchieta (pertencente à Zona Oeste carioca, mas erroneamente situado na Baixada Fluminense na página 70).
Ainda assim, 1976 – Movimento Black Rio se impõe como um livro sedutor, importante e até necessário, por mostrar o poder aglutinador de juventude que não baixou a cabeleira blackpara um sistema que queria enquadrá-la por (fingir) ignorar que, como sentenciou Macau no hino funk que compôs em 1973 sob o efeito da revolta e da injustiça racial e social, "todo brasileiro tem sangue crioulo".
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